sexta-feira, 20 de novembro de 2015

O Materialismo e a negação da realidade do mundo exterior

Na prática, todos nós somos realistas e acreditamos na realidade do mundo exterior tal como ele é percebido por nós. Todos nós acreditamos que o monitor visto a nossa frente está a alguns centímetros distante de nossos olhos, que cores e formas existem tais como a percebemos, que os objetos do mundo exterior estão onde realmente parecem estar, i.e., “fora de nós”, etc. Contudo, se você é um materialista, sabe (ou deveria saber) que – em teoria – o materialismo nega a realidade do mundo externo, i.e., nega que todas as outras coisas ou pessoas são percebidas por ‘você’ como elas realmente são.

O filósofo David Ray Griffin (1997)[1] observa que isso não decorre do materialismo per se, mas porque o materialismo assume a doutrina do sensacionismo, ou seja, de que só podemos conhecer o mundo através dos dados que chegam aos nossos cinco sentidos sensoriais, não podemos observar o mundo como ele realmente é, mas apenas como ele é traduzido por nosso sistema nervoso. Nas palavras de Bernardo Kastrup (2014):


 “O ‘mundo real’ externo do materialismo é supostamente uma amorfa, incolor, inodora, inaudível e intátil dança abstrata de campos eletromagnéticos desprovidos de todas as qualidades da experiência. Ele é supostamente mais parecido a uma equação matemática do que algo em concreto” [2]

O psicólogo Charles Tart (2012) nos concede um exemplo sobre a nossa percepção visual que ajuda a clarificar essa limitação do materialismo enquanto teoria:

“Suponha que você está olhando para um incêndio. Você o experimenta como de cor vermelha; você sente o calor dele na sua pele. Se o fogo está ameaçando você ou seus pertences, você o percebe como perigoso. Numa outra situação e estado de espírito você o percebe como bonito. Estas parecem ser as percepções diretas da realidade externa, mas nossa moderna compreensão do funcionamento cerebral nos diz que elas não são realmente diretas, mas mediadas por muitos processos intermediários, cada um dos quais pode alterar a natureza do que percebemos.
Considere a experiência do fogo como vermelho. Nós acreditamos que entendemos o mundo físico bem o suficiente para termos certeza de que o fogo está emitindo radiação eletromagnética. Parte desta radiação está num alcance vibratório capaz de estimular o olho humano, de modo que a radiação nesta faixa é chamada de luz. A luz de uma frequência em particular não tem quaisquer atributos de cor; é apenas a luz vibrando naquela faixa em particular. Numa descrição mais precisa, é apenas radiação eletromagnética: chamá-la de "luz" é falar sobre luz em relação aos seres humanos.
Esta radiação eletromagnética passa através da lente do olho. A lente pode impor limitações sobre sua percepção; não vai passar, por exemplo, a frequência mais rápida de radiação eletromagnética que chamamos de ultravioleta. Não há, no entanto, problemas significativos com a passagem da radiação do fogo que mais tarde seria chamada de luz vermelha. A radiação atinge estruturas especiais sobre a retina, os cones, que são os responsáveis ​​pela visão das cores. A energia da luz estimula mudanças eletroquímicas nos cones, de tal forma que a frequência específica da luz que os atinge envia um padrão específico de impulsos eletroquímicos, impulsos nervosos, que viajam até os nervos especiais do olho e para o cérebro. O cérebro modifica esses impulsos nervosos de formas complexas que nós não entendemos completamente, e, o que é o maior mistério de todos, o padrão final de impulsos eletroquímicos no cérebro resulta em nossa percepção/experiência do fogo ser vermelho. É a estrutura e a atividade do cérebro e os olhos que criam a experiência de ser vermelho, ao invés do vermelho ser uma propriedade do mundo exterior. Você provavelmente já viu essas fotografias processadas ​​por computador estranhamente coloridas tiradas por satélites de sensoriamento terrestre. A água pode aparecer com tons de vermelho, a vegetação, com tons de azul, a terra nua com tons de verde. Essas fotografias são geralmente rotuladas como de 'falsa cor'. Mas não existe nada de falso num sentido absoluto sobre aquelas cores. Processamento computacional de fotografias envolve exatamente o mesmo tipo de simulação arbitrária do mundo externo que o seu cérebro realiza. Seu cérebro poderia muito bem, e tão utilmente, construir o fogo como a experiência de verde ou azul, no lugar da experiência de vermelho. O processo de construção/simulação nos permite sobreviver no mundo quando há uma correspondência regular e confiável entre alguma característica do mundo exterior e sua percepção construída sobre a mesma. Desde que os incêndios normais sempre fossem verdes, estaria tudo bem [3]

Em resumo, estímulos físicos atingem nossos canais sensoriais, são “reescritos” na forma de impulsos eletroquímicos e sobem nosso sistema nervoso periférico até o cérebro onde todos os dados são integrados e acontece a grande mágica - por assim dizer - da experiência sensorial. Em cada uma dessas etapas, é um ‘ato de fé’ pensar que o mundo externo, tal como ele realmente é, está sendo perfeitamente traduzido pelo processo de construção/simulação que é realizado por nosso corpo.

Existe, no entanto, alguma razão para acreditarmos que o mundo simulado em nossas cabeças é uma cópia perfeita da realidade exterior? Kastrup nos dá algumas razões para abdicarmos dessa crença materialista. Em primeiro lugar, para a nossa sobrevivência física, a teoria da evolução de Darwin não favorece a perfeição das representações interiores sobre a realidade exterior, mas apenas que haja alguma combinação daquilo que é simulado pelo cérebro com o objeto percebido do mundo real externo. Conforme ele pontua – “se um tigre está se aproximando de você, é útil ver algo como um tigre real, e não uma outra alucinação não modulada e assemelhada a um sonho”. No entanto, esclarece que sua própria pesquisa sobre redes neurais artificiais mostra que, ao se criar uma representação interna, é útil decotar algumas partes dos estímulos externos, pois a informação completa é muitas vezes confusa e abafa as pequenas partes da realidade que realmente interessam.

De fato, em termos de vantagens adaptativas, no lugar de favorecer uma tradução plena e fidedigna do mundo exterior, a evolução beneficia uma economia de energia dos sistemas biológicos, para processar somente aquilo que realmente interessa a sua sobrevivência, sem desperdiçar tempo, atenção e recursos no processamento de informações sem direta utilidade para a perpetuação do organismo em seu meio. Em termos de seleção natural, seria desvantajoso, e até mesmo mortal, que um organismo perdesse tempo em copiar o mundo externo em todas as suas partes, perdendo a atenção em detalhes não tão relevantes e reduzindo, assim, sua velocidade de resposta aos estímulos exteriores.

Em segundo lugar, você pode argumentar que a ciência nos proporciona instrumentos científicos capazes de refinar nossas percepções e de nos fazer perceber partes da realidade exterior que normalmente estão escondidas para nossos sentidos. O problema é que esses instrumentos envolvem o mesmo tipo de simulação arbitrária que o seu cérebro. Trazendo a este ponto a parte final da citação de Charles Tart: por qual lógica você entende que sua representação das cores é mais perfeita do que a representação dos satélites de sensoriamento terrestres?

No mesmo sentido, Kastrup:

“Mesmo os instrumentos científicos que ampliam o âmbito de nossa percepção sensorial – como os microscópios que nos permitem ver além das menores características que nossos olhos podem discernir, ou sensores de luz infravermelha e ultravioleta que podem detectar as faixa de frequência para além das cores que podemos ver – são fundamentalmente limitados a nossa estreita e distorcida janela dentro da realidade: eles são construídos com materiais e métodos que estão restritos à cópia editada da realidade em nossos cérebros. Como tal, toda a ciência ocidental e a filosofia, antiga e moderna, do atomismo grego à mecânica quântica, de Demócrito e Aristóteles a Bohr e Popper, deve ter sido e ainda é fundamentalmente limitada à cópia parcial e distorcida da realidade em nossos cérebros que o materialismo implica”.

Assim, dentro de uma perspectiva materialista, experienciamos um mundo simulado em nossas cabeças e somos eternamente incapazes de saber se essa simulação é uma tradução fidedigna da realidade exterior ou uma grande ilusão compartilhada por nossas limitadas máquinas corporais. O biólogo inglês Rupert Sheldrake (2012) observa que:

“A ideia de experiências visuais como simulações dentro de cabeças leva a consequências estranhas, tais como a que o filósofo Stephen Lehar apontou. Isso significa que, quando eu olhar para o céu, o céu que eu vejo está dentro da minha cabeça. Meu crânio está além do céu![4].

No entanto, ‘apesar das teorias de cientistas acadêmicos e filósofos, a maioria das pessoas não aceita que todas as suas experiências estão localizadas dentro de suas cabeças. Elas pensam que estão onde parecem estar, fora de suas cabeças”, observou Sheldrake.

Griffin chega a ser provocativo. Pontua que a doutrina do sensacionismo (que é pressuposta pelo materialismo) leva, em teoria, ao solipsismo, a doutrina que 'Eu' realmente não sei se algo, além de mim, existe tal como é em si mesmo. Kastrup também atiça os materialistas. Destaca, no que diz respeito a realidade do mundo exterior, que o materialismo consegue ser ainda mais abstrato e metafísico do que os reinos espirituais postulados por tradições religiosas!

“Assim, segundo o materialismo, a única maneira que você pode experimentar um mundo fora de sua cabeça é se os sinais do mundo exterior penetrarem o seu cérebro através dos órgãos dos sentidos e, então, de alguma forma modularem a criação de uma alucinação cérebro-construída que corresponde ao mundo externo. Portanto, sua vida inteira - toda a realidade que você jamais pode conhecer diretamente - é apenas uma 'cópia' interna da 'real realidade'.' Nada que você vê, toca, cheira, sente ou escuta em torno de você agora é uma apreensão direta da 'realidade'. Em vez disso, é tudo uma espécie de cópia interna gerada pelo seu cérebro. O Materialismo requer, portanto, uma duplicação de toda a realidade: ele pressupõe um universo 'externo' abstrato e improvável ao lado do conhecido, concreto e inegável universo da experiência direta. Nenhum 'reino espiritual' postulado por tradições religiosas do mundo é tão abstrato ou metafísico como a realidade 'externa' do materialismo, pois esta última está, por definição, para sempre além da experiência. Alguém é forçado a se perguntar se isso realmente pode ser a mais simples, a mais parcimoniosa e a mais razoável explicação metafísica para as nossas observações”.




[1] Parapsychology, Philosophy and Spirituality: a postmodern exploration. Ed. State University of New York
[2] Why Materialism Is Baloney: How True Skeptics Know There Is No Death and Fathom Answers to life, the Universe, and Everything. Iff Books (April 25, 2014). Bernardo Kastrup tem um Ph.D. em engenharia da computação com especializações em inteligência artificial e computação reconfigurável. Ele trabalhou como cientista em alguns dos laboratórios de pesquisa mais importantes do mundo, incluindo a European Organization for Nuclear Research (CERN) e a Philips Research Laboratories (onde o "Efeito Casimir" da Teoria Quântica de Campos foi descoberto).
[3] Waking Up: Overcoming the Obstacles to Human Potential.
[4] The Science Delusion. Coronet Books; First edition & printing in this form edition.

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